Crucificação Branca - Marc Chagall


“O inferno é não amar nunca mais.”(Georges Bernanos)
Eles não dormiram bem naquela noite. Ela ficou até muito tarde na vigília, ouvindo discursos inflamados. Ele ficou até muito tarde no batalhão, ouvindo ordens inflamadas. Tiveram sonhos agitados e premonições.
Fazia frio. O ar poderia ser cortado com um punhal. Ele vestiu a farda e se lembrou das oito horas em pé dentro do ônibus, na viagem de sua pequena cidade até a capital do Estado. Ela vestiu a camiseta do sindicato e pensou nas crianças que estavam sem aula, na escola de periferia.
Ela pensava no comando de greve. Ele pensava no comando da operação. Ela não entendia por que tanto ódio nas palavras dos sindicalistas. Ele não entendia por que tanto ódio nas palavras dos superiores.
O salário e o soldo são iguais. Ela ganha mal. Ele ganha mal. Ela estava lá para defender a justiça. Ele estava lá para defender a lei. Ela não concordava com as mudanças no fundo de aposentadoria. Ele não concordava com a invasão de prédios públicos. Ela não entendia por que os sindicalistas falavam tanto de terceirização, de maioridade penal, de financiamento eleitoral, de desmilitarização da polícia, de controle da mídia. Ele não entendia por que teve de sair de sua pequena cidade, sem nenhum treinamento, para enfrentar uma guerra na capital.  Mas ela acha que os partidos são parte do problema, não da solução; e ele acha que os políticos são parte do problema, não da solução.
Ela carregava um terço da misericórdia na mochila. Ele guardava uma medalhinha no bolso. Em silêncio, rezaram. Ambos se dirigiram a Nossa Senhora da Salete, cuja história não conheciam bem, mas em quem inexplicavelmente confiavam do fundo da alma. Rogai por nós, Mãe. Agora e na hora da nossa morte.
Os dois grupos se aproximaram. As vozes do comando de greve e do comando da operação se misturavam com o barulho das bombas, as colunas de fumaça, os gritos de desespero, o ódio, o caos. Por um instante, eles se cruzaram no meio da rua. E se reconheceram. Por alguns instantes, ele ficou parado como Sócrates um dia, na Guerra do Peloponeso; ela ficou parada como Euclides da Cunha um dia, no massacre de Canudos.
O cravo saiu ferido, a rosa despedaçada. Com escoriações e hematomas, ela foi levada para o ambulatório improvisado na prefeitura – e chorou feito uma menina com medo do escuro. Sem saber onde estava, vagando na praça, ele não tinha ferimentos no corpo, mas nunca mais será o mesmo homem.
O policial e a professora são nossos irmãos. Meu leitor, meu amigo, eu lhe suplico: não deixemos que a política nos impeça para sempre de amá-los como Ele nos amou.